domingo, 10 de fevereiro de 2013

O QUÊ A TRAGÉDIA DE SANTA MARIA NOS ENSINA

Num dos quadros cômicos encenados pelo ator britânico Rowan Atkinson, conhecido mundialmente como Mr. Bean, o comediante se encontra num supermercado e sem pestanejar abre um tubo de pasta de dentes, cheira o conteúdo e em seguida começa a escovar os dentes com o creme para testá-lo. Os passantes atônitos observam a cena inusitada chocados com a maluquice daquele consumidor abusado.

A graça da cena, entretanto, esta no fato de acharmos o tal teste ridículo, afinal de contas, é obvio em nossas mentes que um tubo de pasta de dentes de uma marca famosa posto a venda numa rede de supermercados muito conhecida só pode conter material de qualidade, que tenha passado por todos os testes sanitários, fiscalizações dos órgãos de saúde e suporte ao consumidor necessários para que vá para as gondolas e ao final cumpram plenamente a função propagandeada que é a de contribuir para a nossa boa higiene bucal.

Este mesmo estado mental é que nos leva, por exemplo, a subir num avião comercial certo de que todas as rotinas de segurança da companhia aérea, da empresa construtora da aeronave, do aeroporto e da tripulação foram seguidas de modo a permitir que a chegada ao destino esteja garantida, ou que ao depositar dinheiro no banco poderemos sacá-lo na hora e no montante que quisermos, assim como quando adquirimos um novo apartamento podermos ficar tranqüilo que ele não irá desabar na primeira tempestade. Quando vamos almoçar num restaurante sequer passa pela nossa cabeça que o alimento não esteja próprio para consumo.

Estamos falando de confiança. Sem ela não há trocas, portanto sem ela não existe mercado e sem mercado não existe desenvolvimento, não existe prosperidade, pois todos teriamos que viver com aquilo que podemos produzir, estaríamos , portanto, condenados a um estado de subsistência. Parece pouca coisa mas nós - homo sapiens - somos os únicos animais que se dispõe a compartilhar tarefas entre membros não relativos (sem grau de parentesco) da mesma espécie. Por conta deste traço evolutivo podemos hoje contar com o trabalho de milhares de pessoas aplicados nos bens e serviços que consumimos em troca da nossa própria contribuição nesse mesmo complexo emaranhado.

Trata-se de um círculo de confiança. A divisão do trabalho demanda que cada um faça a sua parte nesta corrente. Este compartilhamento de tarefas provavelmente teve inicio na pré-história quando o primeiro homem das cavernas confiou a sua companheira a preparação da comida enquanto ele caçava o alimento do dia seguinte. Essa divisão aumentou a eficiência e produtividade para os dois mas exigiu que houvesse confiança mútua. A partir desta semente, o processo se expandiu para outros membros da família e depois da mesma tribo e assim por diante até chegar nos dias atuais onde fazemos negócios com desconhecidos de todas as partes do mundo.

Todo bem ou serviço colocado a disposição no mercado precisa ter algum valor para haver demanda. Este valor é atribuído pelo consumidor mas tem estrita relação com o estoque de trabalho utilizado em sua produção e com o grau de satisfação gerado versus o prometido. Não se pode querer comprar um carro popular e esperar que ele entregue os mesmos itens de um carro de luxo.  Enfim, é imperioso para que a confiança subsista -  como vimos ela é o combustível da prosperidade nas sociedades modernas - que o comprador e o vendedor estejam alinhados em termos de expectativa e compromisso. Compromisso este de todos os envolvidos na fabricação do produto ou prestação do serviço, para que este contenha todos os atributos divulgados e prometidos por quem os fornece.

A boate KISS, como qualquer outro produto comercializado no mercado, também continha a soma de várias horas de trabalho aplicadas em sua "fabricação". Desde a construtora do imóvel ao engenheiro ou arquiteto que desenhou o projeto conforme o objeto proposto, da empresa de energia elétrica aos garçons, do empresário que idealizou e investiu no negócio ao projetista de som, da prefeitura e corpo de bombeiros que autorizaram seu funcionamento aos órgãos de fiscalização que checaram (ou deveriam fazê-lo) se as exigências de segurança estavam sendo cumpridas, do fabricante dos extintores de incêndio aos agentes que contratavam as atrações musicais, do faxineiro aos seguranças da boate, do engenheiro elétrico ao fornecedor dos acabamentos que decoravam o interior da casa noturna.

Do lado da demanda os aspirantes a consumir vão olhar se o preço esta compatível com o produto. No caso da boate KISS, o prometido como a maioria das boates deveria ser mais ou menos isso: laser, bebida e comida, diversão, música alta, segurança, dança e show ao vivo. Foi confiando nestes retornos que os jovens consumidores pagaram pelos seus ingressos...

E veio a tragédia. E por quê ? Simples. Do lado da oferta teve gente que não entregou o que prometeu. Não trabalhou para que o resultado fosse compatível com o proposto. Fogos de artifício impróprio para ambientes fechados; saída de segurança inadequada para uma casa noturna daquele porte, seguranças mau treinados, material tóxico e altamente inflamável no interior da boate, extintores de incêndio defeituosos, alvará de funcionamento vencido, show pirotécnico da banda musical sem o devido controle, e por aí vai... O círculo de confiança foi violentamente quebrado e vidas foram perdidas (238 até o momento em que escrevo este post).

A confiança é a cola que une as relações na sociedade altamente especializada em que vivemos hoje em dia. Todas as vezes em que um evento desta amplitude ocorre, ele abala toda a credibilidade que as pessoas precisavam ter nas outras para ir ao médico e acreditar que não sofrerá com um erro tosco (em Campinas, 2 pessoas morreram ao fazer exames de RM), para subir num ônibus e contar que ele não vai ser queimado (em Santa Catarina, mais de 10 foram queimados em 2 semanas), para ir ao estádio de futebol e confiar que não será pressionado contra o alambrado (no jogo do Gremio, 9 pessoas se feriram na avalanche que a torcida costuma fazer em suas comemorações).

A identificação e punição dos responsáveis é a ação mais importante a ser executada para que a confiança não se torne mais frágil e que para o desenvolvimento e a prosperidade retome seu curso.



2 comentários:

  1. Ótima postagem. Meus parabéns!!!

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  2. Quê bom que você gostou. Aproveito para recomendar a leitura do último post MINISTRO DA PESCA QUER CRIAR PESCOBRÁS.

    abs.

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